+
O Fadista

segunda-feira, outubro 31, 2005

Quando Paloma abriu os olhos, sentiu que tinha morrido.
As dores na cara eram aterradoras. Já tinha visto muitos documentários, o médico já lhe tinha dito que isso seria normal, mas o facto é que a cirurgia lhe tinha retalhado o rosto de forma brutal.
E não era só o rosto. O procedimento cirúrgico tinha incluído escultura facial, rinoplastia, injecções de colagénio, implantes dentários, lipo-aspiração, lipo-escultura, remoção de costelas e implantes mamários. Já que tinha que ser, porque não? Porque não aproveitar a necessidade de mudar com o desejo de mudar? Parecia-lhe uma miragem o dia em que decidiram que Paloma não podia continuar como estava. Que tinha que desaparecer. Que tinha que mudar. "Já não é uma opção, temos que tratar deste teu problema" - tinham-lhe dito. E trataram. O médico, o melhor, a discrição, absoluta.
Agora já não havia retorno. Estava feito. O rosto que conhecia, do espelho e das fotografias de menina estava perdido para sempre. Para a eternidade. "Mantenha-me os olhos Dr." - foi o seu único pedido para a cara. Nunca esquecera as frequentes palavras bondosas de sua mãe "Tens os olhos de uma princesa", "o Mar dos teus olhos é o mais azul de todos". Aquelas coisas que o amor de mãe costuma dizer. Mas que para Paloma tinham ficado. "Com alguma coisa minha vou ficar" - foi o que pensou antes de adormecer anestesiada.


Posted by rms |




domingo, outubro 30, 2005

Norberto acelerou o passo de forma a que o autocarro não lhe escapasse. Normalmente, tomaria um táxi para chegar ao seu destino, mas hoje não. Apetecia-lhe demorar. Serpenteou célere entre as pessoas que saiam do autocarro e que esperavam na paragem. Num pulo ligeiro e elegante, saltou para dentro do autocarro e comprou um bilhete com os trocos que tinha.
Já não se lembrava quanto custava um bilhete. Tinha sido há muito tempo a última vez que fora passageiro do 30. Avançou pelo corredor analisando onde estavam os lugares vazios. Sentou-se quase ao fundo, à janela. Quando ao de leve tocou na senhora ao seu lado disse - "Perdão".
Norberto olhou à sua volta. Tantas caras diferentes de si próprio. Havia de tudo. Senhoras parecidas com a sua mulher-a-dias, jovens com pinta de bandido carregados de mochilas e leitores de mp3, idosos de cara inocente viajando sem destino, trabalhadores de mãos gastas de aspecto rude e cansado. E ele. Apesar do seu à vontade na maioria das interações sociais, não deixou de se sentir diferente dos outros. Os sapatos italianos de couro macio, as calças cremes business casual da Dockers, a camisa de riscas azuis Ralph Lauren, o casaco de caça da Burberry's, o cabelo impecavelmente cortado no António, as mãos macias de menina, de quem nunca as usou para trabalhar, tudo nele era diferente dos outros. E ele sabia. Era o único naquele autocarro que nesse dia ia cometer um crime. Não pensou muito nisso e olhou para a rua além da janela.


Posted by rms |




sexta-feira, outubro 28, 2005

CapítuloI

Albertino brincava com o copo de whiskey barato, criteriosamente pedido - "Um Johnnie Walker com duas pedras de gelo" - dissera ele ao empregado. Os movimentos circulares conferidos ao copo produziam o característico cloque cloque das pedras de gelo em colisão. Albertino estava farto de esperar. No palco, uma qualquer Adriana ou Fabiana tirava a roupa de forma mecânica. Já não havia paciência para as beldades de Minas Gerais com mais jeito para seduzir do que para dançar.
Na mesa ao lado havia dois homens gordos de bigode e duas prostitutas das mais batidas. A conversa do costume. Ela já a conhecia.
Puxou de um cigarro e apesar de ter o isqueiro em cima da mesa fez questão de usar a carteira de fósforos. "Afrodites - Night Club". Dava-lhe vontade de rir. Em tempos teria levado aquele lugar a sério e ficado impressionado com o material, mas Albertino já tinha visto algum mundo ante seus olhos. Agora admirava o provincialismo da boite à beira da estrada nacional.
Rosa entrou. Dirigiu-se a à mesa do canto onde Albertino brincava com os fósforos e sentou-se a seu lado.
- "És um idiota. Estou farta destes encontros sórdidos neste tipo de lugar" - disse Rosa.
-"Não começes, hoje não estou com paciência para esta conversa. Queres beber alguma coisa? - disse Albertino
- "Não, vamos andando" - respondeu Rosa
Sairam.


Posted by rms |




^



 © O Fadista 2005 - Powered by Blogger