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O Fadista

sexta-feira, novembro 04, 2005

Otávio regressava a casa após mais um dia de trabalho.
O mesmo caminho de todos os dias percorrido lentamente no meio do trânsito da cidade. "Que maçada, toca a andar que eu quero ir jantar" - dizia sozinho.
Na rádio as mesmas notícias do costume.
De repente algo deixou de fazer sentido. O veículo que seguia à sua frente e com cuja marcha lenta tinha acabado de reclamar deixou de ser apenas mais um carro. Era um camião do lixo. "Às oito da noite?" - pensou Otávio. Primeiro, pensou que seria apenas mais uma ridícula ineficiência dos serviços camarários, mas depois tornou-se ainda mais esquisito. O camião do lixo circulava lentamente à sua frente, bloqueando a passagem, sem motivo aparente. Passados uns metros de marcha lenta o camião parou. Mais uns segundos passaram e uma senhora de cabelo impecavelmente penteado saiu do camião pelo lado do passageiro, falando ao telemóvel. Vestida com a farda dos agora politicamente correctos Técnicos de Higiene Urbana, a senhora com ar de Tia desligou o telefone e de forma desajeitada calçou as luvas. Dirigiu-se a um dos quatro caixotes de lixo que estavam no passeio. Ao caixote que tinha uma marca vermelha. Arrastou-o até à parte traseira do camião e colocou-o no suporte. O caixote foi então içado e sacudido pelo baloiço. A carga foi despejada para dentro das mandíbulas rotativas do monstro do lixo. A senhora voltou para dentro do camião. O camião arrancou ignorando os restantes caixotes da rua. Otávio pensou "É perfeito. Isto é que é limpeza".


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terça-feira, novembro 01, 2005

O relógio marcava seis horas naquele fim de tarde de inverno chuvoso. Júlia, outrora uma bela mulher impregnada da alegria própria de uma juventude crivada de sonhos, terminara mais um dia da sua habitual jornada na fiacção. Visivelmente apagada e sem esperança, mantinha aquele trabalho há 17 anos, altura em que se apaixonou por Norberto com quem viria a casar-se e a ter os seus três filhos. Não imaginara Júlia, que poucos anos depois, se viria a tornar o pilar daquela casa assegurando o sustento e a dignidade do que ainda se poderia apelidar de família.
Seria um fim de tarde igual a tantos outros, marcados pela mecanização instintiva dos mais pequenos gestos diários, se algo de inesperado não tivesse surpreendido Júlia. Norberto, entregue de forma inabalável ao vício do alcool, que o vinha consumindo desde o seu despedimento da firma de sucatas onde em tempos trabalhara, não se encontrava, como habitualmente, prostrado naquele sofá velho e enfadonho, situado no canto mais obscuro da minúscula sala.......


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segunda-feira, outubro 31, 2005

Quando Paloma abriu os olhos, sentiu que tinha morrido.
As dores na cara eram aterradoras. Já tinha visto muitos documentários, o médico já lhe tinha dito que isso seria normal, mas o facto é que a cirurgia lhe tinha retalhado o rosto de forma brutal.
E não era só o rosto. O procedimento cirúrgico tinha incluído escultura facial, rinoplastia, injecções de colagénio, implantes dentários, lipo-aspiração, lipo-escultura, remoção de costelas e implantes mamários. Já que tinha que ser, porque não? Porque não aproveitar a necessidade de mudar com o desejo de mudar? Parecia-lhe uma miragem o dia em que decidiram que Paloma não podia continuar como estava. Que tinha que desaparecer. Que tinha que mudar. "Já não é uma opção, temos que tratar deste teu problema" - tinham-lhe dito. E trataram. O médico, o melhor, a discrição, absoluta.
Agora já não havia retorno. Estava feito. O rosto que conhecia, do espelho e das fotografias de menina estava perdido para sempre. Para a eternidade. "Mantenha-me os olhos Dr." - foi o seu único pedido para a cara. Nunca esquecera as frequentes palavras bondosas de sua mãe "Tens os olhos de uma princesa", "o Mar dos teus olhos é o mais azul de todos". Aquelas coisas que o amor de mãe costuma dizer. Mas que para Paloma tinham ficado. "Com alguma coisa minha vou ficar" - foi o que pensou antes de adormecer anestesiada.


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domingo, outubro 30, 2005

Norberto acelerou o passo de forma a que o autocarro não lhe escapasse. Normalmente, tomaria um táxi para chegar ao seu destino, mas hoje não. Apetecia-lhe demorar. Serpenteou célere entre as pessoas que saiam do autocarro e que esperavam na paragem. Num pulo ligeiro e elegante, saltou para dentro do autocarro e comprou um bilhete com os trocos que tinha.
Já não se lembrava quanto custava um bilhete. Tinha sido há muito tempo a última vez que fora passageiro do 30. Avançou pelo corredor analisando onde estavam os lugares vazios. Sentou-se quase ao fundo, à janela. Quando ao de leve tocou na senhora ao seu lado disse - "Perdão".
Norberto olhou à sua volta. Tantas caras diferentes de si próprio. Havia de tudo. Senhoras parecidas com a sua mulher-a-dias, jovens com pinta de bandido carregados de mochilas e leitores de mp3, idosos de cara inocente viajando sem destino, trabalhadores de mãos gastas de aspecto rude e cansado. E ele. Apesar do seu à vontade na maioria das interações sociais, não deixou de se sentir diferente dos outros. Os sapatos italianos de couro macio, as calças cremes business casual da Dockers, a camisa de riscas azuis Ralph Lauren, o casaco de caça da Burberry's, o cabelo impecavelmente cortado no António, as mãos macias de menina, de quem nunca as usou para trabalhar, tudo nele era diferente dos outros. E ele sabia. Era o único naquele autocarro que nesse dia ia cometer um crime. Não pensou muito nisso e olhou para a rua além da janela.


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sexta-feira, outubro 28, 2005

CapítuloI

Albertino brincava com o copo de whiskey barato, criteriosamente pedido - "Um Johnnie Walker com duas pedras de gelo" - dissera ele ao empregado. Os movimentos circulares conferidos ao copo produziam o característico cloque cloque das pedras de gelo em colisão. Albertino estava farto de esperar. No palco, uma qualquer Adriana ou Fabiana tirava a roupa de forma mecânica. Já não havia paciência para as beldades de Minas Gerais com mais jeito para seduzir do que para dançar.
Na mesa ao lado havia dois homens gordos de bigode e duas prostitutas das mais batidas. A conversa do costume. Ela já a conhecia.
Puxou de um cigarro e apesar de ter o isqueiro em cima da mesa fez questão de usar a carteira de fósforos. "Afrodites - Night Club". Dava-lhe vontade de rir. Em tempos teria levado aquele lugar a sério e ficado impressionado com o material, mas Albertino já tinha visto algum mundo ante seus olhos. Agora admirava o provincialismo da boite à beira da estrada nacional.
Rosa entrou. Dirigiu-se a à mesa do canto onde Albertino brincava com os fósforos e sentou-se a seu lado.
- "És um idiota. Estou farta destes encontros sórdidos neste tipo de lugar" - disse Rosa.
-"Não começes, hoje não estou com paciência para esta conversa. Queres beber alguma coisa? - disse Albertino
- "Não, vamos andando" - respondeu Rosa
Sairam.


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